terça-feira, junho 30, 2015


quando a noite veio me esmagar com suas mãos frias
quando não tive saída abri a porta da sala

e você entrou

seus olhos eram mais gelados
que o silêncio dos pássaros noturnos
mas suas mãos ágeis deixaram em mim
o gosto quente e claro das manhãs de inverno

segunda-feira, junho 29, 2015

tem uma inconfundível e inexplicável melancolia
quando é inverno e o dia é claro e frio
só isso que posso dizer agora
só isso que me faz querer ficar aqui parada
sentindo o vento gelado
e tentando entender a humanidade
ou a falta dela
é isso que talvez me faça querer a noite
e tomar o vinho que está guardado no armário da sala

quarta-feira, junho 24, 2015

até ontem

vim como quem não quer nada
e entrei na noite como se dela tivesse nascido
até ontem não gostava das pessoas do dia
não gostava das cores do calor
e de tudo que se fazia de dia

entrava na noite e nela me perdia
com os olhos fundos a cara pálida
encontrava gente com essa mesma cara
às vezes muito maquiadas
e pareciam artistas de cinema-mudo
olhava para elas como se soubesse o que faziam ali
escondidas no fundo dos bares ouvindo blues e jazz
o nariz e os olhos dançando

reconhecia quem era da noite
e quem estava ali vindo do dia
podia pensar que eram felizes
suas roupas brilhavam e brilhavam seus cabelos
falavam dos poetas góticos e dos impressionistas
dos beatniks e do cinema francês
conheciam um bom vinho e a pior cachaça
e pensavam que podiam mudar alguma coisa
neste mundo tão pobre
e mesmo nobres
comiam pão com mortadela

e eu vim com a noite e nela me escondia
e me encantava com a vida desse seres
e fazia parte desse mundo escuro
de pouca luz e gestos serenos

até ontem gostava deles
e posso ser um deles
mas hoje vi a luz do sol
e deixei que aquecesse minha cama fria

quarta-feira, junho 10, 2015

o caso do camaleão


sempre odiei reunião de condomínio e raramente participei de uma, a não ser quando fui síndica, porque não tinha jeito de escapulir. mas um dia, o rafa, meu primogênito, disse que tinha visto um rato passeando pelo apê. na época o prédio era habitado praticamente por senhores e senhoras mais ou menos idosos. fiquei intrigada e preocupada com aquilo e lá fui eu à reunião pra falar com o síndico e com os moradores, a fim de saber se eles também tinham visto algum roedor no edifício. minha casa era a mais movimentada e barulhenta de todas, com dois adolescentes, os amigos, os amigos dos amigos deles e os meus amigos. os anciãos achavam que minha casa era um ninho de perdição. um antro de drogados. não nos viam com bons olhos. mas mesmo assim resolvi enfrentá-los. o meu horror a ratos era maior e eu tinha que dar uma resposta pro rafa. pois bem. cheguei lá na cara dura e expus o fato. todos me olharam como se eu fosse um et e cochicharam entre si e, quase ao mesmo tempo, disseram: "não era rato, era camaleão!". pensei: "mas camaleão na zona urbana, no brasil?" e eles reforçaram: "você nunca viu camaleões nas paredes do prédio, nos corredores?" eu disse que não e respondi: "meu filho viu um rato!". eles afirmaram: "mas não é rato, é camaleão! o controle remoto de sua casa, por exemplo, pode ser um camaleão disfarçado!" "seu filho deve estar chupando drogas!" saí da reunião convicta de que eles estavam certos, abri a porta do apê, o rafa me olhando ansioso, e eu disse muito brava: "rafa, você tá chupando drogas?"